DA PERIGOSA RELATIVIZAÇÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
JOÃO RAFAEL CINÉSIO FEITOSA GARAVELLO
Advogado atuante na Área Criminal
Desde o ano de 2009, a polêmica ancorada na discussão que envolve a possibilidade de prisão a partir de decisão proferida por segunda Instância seguiu 5 vezes para o Plenário do STF. Na primeira oportunidade, em fevereiro do referido ano, os ministros decidiram que a aludida prisão era inconstitucional, e bem por isso, mantiveram incólume o instituto denominado Presunção de Inocência que somente permitia a prisão após esgotadas todas as vias recursais. Foram 7 votos a favor contra 4.
Em fevereiro de 2016, os ministros da Suprema Corte mudaram o entendimento anterior, e passaram a permitir o início de cumprimento da pena imposta ao condenado logo após decisão proferida por um Colegiado, ou seja, pelo segundo grau de jurisdição. Pelo mesmo placar, (7 votos a 4), a maioria prevaleceu neste sentido.
Em outubro deste mesmo ano, os ministros mantiveram o entendimento, reconhecendo a constitucionalidade da prisão antes mesmo do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Desta vez, com placar mais apertado, a maioria foi formada por 6 votos a 5. Passado pouco tempo, em novembro de 2016, o quarto debate foi travado no Plenário do STF, oportunidade em que os ministros, também por maioria de votos, reafirmaram a jurisprudência do aludido Tribunal que permitia a prisão após decisão proferida pela segunda instância. Desta vez, foram 6 votos a 4.
No ano de 2018, em outubro, durante o julgamento do Habeas Corpus impetrado em favor do Ex-Presidente, os ministros negaram a soltura do Sr. Luiz Inácio Lula da Silva, e novamente mantiveram o quanto decidido nas últimas 4 oportunidades. Passado uma década, no plano abstrato, a matéria está sendo mais uma vez debatida com a propositura da denominada Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 43, 44 e 54.
“O Brasil aderiu a Declaração Universal dos Direitos do Homem ainda sob a vigência da
Constituição Federal de 1946, famosa por ser reconhecida como a Constituição Democrática, incorporando, portanto, seus preceitos ao ordenamento jurídico pátrio, condição que permaneceu inalterada com
a promulgação da Carta Republicana de 1988”
O objetivo desta ação de mão dupla, repousa na declaração de constitucionalidade ou não do Artigo 283 do Código de Processo Penal, cuja dicção pontua, justamente, a necessidade de uma sentença condenatória transitada em julgado para que a liberdade do transgressor da Lei Penal pudesse ser legitimamente tolhida. A maior dificuldade, ao meu sentir, encontra-se alicerçada na dificuldade em que o Supremo tem de conciliar um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, (Presunção de Inocência ou de Não Culpabilidade), com o acalorado clamor público, especialmente em tempos da operação intitulada Lava-Jato deflagrada pelo Ministério Público Federal que alcançou o seu apogeu, ao direcionar poderosos agentes públicos, (que até então eram considerados inatingíveis) para o cárcere. A discussão tem como porta de entrada o Inciso LVII do Artigo 5° da Constituição Federal, que prescreve que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória”, sendo que é deste dispositivo legal que extrai o famigerado Princípio da Não Culpabilidade, que por sua vez, foi baseado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, quando o mundo horrorizado com a 2ª Guerra Mundial, notadamente quanto aos rigores e abusos perpetrados pelo Nazismo, (que confundia na mesma pessoa acusador e julgador) através de seus representantes na sede da Organização das Nações Unidas localizada em Paris, no dia 10 de dezembro de 1948 editaram e assinaram o referido documento que até os dias atuais repercute no direito positivado.
Referida declaração, em seu Inciso I do 11° Artigo, estatuiu que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for considerada culpada, culpabilidade esta que se dará mediante a instauração de um processo público que lhe seja assegurada a ampla defesa e o contraditório”, ou seja, em observância a todos os princípios inerentes ao devido processo legal.
“Diante de todo o exposto, conclui-se ser plenamente possível a prisão antes do trânsito em julgado, desde que observadas às regras do jogo consistentes no preenchimento dos pressupostos autorizadores da prisão cautelar previstas no Artigo 312 do Código de Processo Penal”
O Brasil aderiu a Declaração Universal dos Direitos do Homem ainda sob a vigência da Constituição Federal de 1946, famosa por ser reconhecida como a Constituição Democrática, incorporando, portanto, seus preceitos ao ordenamento jurídico pátrio. Tivemos ainda um Código de Processo Penal elaborado na vigência do Regime Ditatorial, sob a égide da Constituição polaca de 1937. Com a promulgação da Constituição cidadã de 1988, tal garantia permaneceu intacta. Dito isso, resumidamente, seja pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, seja pela Constituição Federal, ninguém poderá ser considerado culpado, até que sobrevenha uma condenação definitiva, ou seja, sentença penal condenatória transitada em julgado ou, em outras palavras, daquela que não comporta mais recurso.
De outro norte, a mesma Constituição que expressamente consagrou o Princípio da Não Culpabilidade, em seu Artigo 5°, Inciso LXI, previu a possibilidade de prisão em flagrante delito, ou mesmo nos casos daqueles crimes considerados inafiançáveis. Desta maneira, como se sabe, referida prisão é bem anterior ao trânsito em julgado da condenação, pois se quer existe processo judicial instaurado. Com isso, estaríamos defronte a uma dicotomia do texto constitucional e afronta direta ao Princípio da Presunção de Inocência? A resposta é negativa. Explica-se. É que prisão antes do trânsito em julgado só se justifica, diante dos princípios supramencionados, se ela tiver natureza eminentemente acautelatória de caráter processual, sendo, portanto, uma prisão de propensão instrumental.
E o que seria prisão cautelar, processual ou instrumental? Seria aquela prisão que se impõe como a necessidade reclamada pelo próprio processo, ou seja, para o fim de garantir a sua efetividade propriamente dita, de modo que, se a referida prisão não fosse decretada, seus efeitos estariam frustrados por ações adotadas pelo agente que se busca a formação da culpa com a superveniente condenação.
“Portanto, a harmonia do Artigo 283 do Código de Processo Penal com o Inciso LVII do Artigo 5° da
Constituição Federal é completa e irredutível, devendo a Corte maior reconciliar a sistemática da prisão à literalidade do referido dispositivo, pois, pensamento diverso, desaguaria no indesejado retrocesso e
desrespeito às garantias e direitos fundamentais dos indivíduos que compõem esta querida nação”
Por via transversa, é certo que a referida prisão cautelar, por ser medida drástica, (já que restringe antecipadamente a liberdade da pessoa sem a devida formação da culpabilidade), não pode ser utilizada sem parâmetros e ponderação. Desta maneira, para a decretação desta prisão deve-se, necessariamente, verificar se no caso concreto está presente o conhecido brocardo latim denominado “periculum in mora”, ou seja, a prisão instrumental só poderia ser imposta quando demonstrado cristalinamente o “perigo da demora”.
Desta maneira, a prisão processual se justifica na medida em que não seria possível aguardar toda a marcha processual e a finalização do processo, para só então prender o investigado/acusado, visto que, se isto ocorresse, o processo não chegaria ao fim, tornando-o, absolutamente inviável. Nesta quadratura, as hipóteses claras de “periculum in mora” estão demonstradas no Artigo 312 do Código de Processo Penal, que afiguram-se como requisitos indispensáveis para da decretação da prisão cautelar, sendo elas: 1) para garantia da ordem pública; 2) por conveniência da instrução criminal; 3) para assegurar a aplicação da Lei Penal. A primeira, para assegurar a Ordem Pública, revela-se na medida em que, se posto em liberdade, o acusado voltará a delinquir praticando novos delitos, sendo necessária, portanto, a sua segregação cautelar para o fim de impedi-lo de praticar novos crimes em detrimento da sociedade e/ou comunidade local. Exemplo clássico é a do criminoso de alta periculosidade, que não deve permanecer em liberdade enquanto espera a formação de sua culpa a ser declarada pelo Poder Judiciário, o que, não raras vezes, pela morosidade demora anos.
O segundo requisito, para garantia da instrução criminal, revela-se na necessidade de prender cautelarmente o agente que intimida testemunhas ou que destrói provas que lhe são convenientes, ou seja, que faz uso de artifícios espúrios para justamente prejudicar os meios que sustentariam a sua futura condenação.
Finalmente, quando existe fundado receio de fuga do agente, poderá o investigado/acusado ser preso instrumentalmente para garantia da aplicação da Lei Penal representada pela superveniente condenação, pois se assim não fosse, ao final, não seria possível localizá-lo para fins de execução da pena a ele imposta. Assim, no que diz respeito aos fundamentos legais para a decretação desta forma de restrição de liberdade, somente poderá ser admitida quando imprescindível, ou seja, quando sua necessidade exsurgir demonstrada das circunstâncias do caso concreto, mediante decisão fundamentada do juiz que a decreta.
Diante de todo o exposto, conclui-se ser plenamente possível a prisão antes do trânsito em julgado, desde que observadas às regras do jogo consistentes no preenchimento dos pressupostos autorizadores da prisão cautelar previstas no Artigo 312 do Código de Processo Penal. Entende-se que a referida prisão processual não ofende o Princípio da Não Culpabilidade, tendo em vista que o interesse público prevalece sobre o direito privado.
Neste sentido, com o avento da Súmula 09 do Superior Tribunal de Justiça, restou pacificado o entendimento de que a prisão cautelar não ofende a garantia constitucional da Presunção de Inocência, colocando uma pá de cal sobre o assunto. Pois bem. Feitas tais considerações, novamente se concentra na possibilidade ou não de prisão que não seja a cautelar, e se esta modalidade estaria em alinho com o Princípio da Não Culpabilidade previsto na Carta da República. Respeitados entendimentos contrários, entendo que não, pois, a meu ver, precipitar a execução da reprimenda importa em antecipação de culpa por serem indissociáveis. O Inciso LVII do Artigo 5° da Constituição Federal prescreve que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, ou seja, a culpa surge após de alcançada a preclusão máxima traduzida pelo não cabimento de recursos.
Desse modo, descabe inverter a ordem natural do processo criminal, isto é, apurar para, após de selada a culpa definitiva prender, e não encarcerar para aí esperar a condenação que ainda é incerta. Os exemplos de prisões injustas são incontáveis pelo mundo a fora, sendo impossível devolver a liberdade perdida ao cidadão, que após de lançado à sela, obteve a sua inocência declarada. Alguns ficaram décadas no calabouço.
É preciso aprender com isso. Há vozes que sustentam que a morosidade do Poder Judiciário beneficia aqueles que, por condições financeiras extravagantes, alcançam as Cortes Superiores, pois até que sobrevenham decisões do grau maior a prescrição acabaria sendo operada. Isto, de fato, lamentavelmente ocorre em alguns casos, no entanto, esta retardada duração do processo não é de responsabilidade dos jurisdicionados, pois cabe ao Estado o ônus de propiciar aos indivíduos a sua razoável duração ou trâmite.
Lado outro, em pior aflição, estaria aquele que espera preso durante todo esse período por uma decisão que poderia ser modificada por seu interposto recurso. É nestas alturas que lembro-me de Voltaire, filósofo francês do século 18 que revolucionou a Europa com seus princípios iluministas. A ele devemos algo que ainda hoje se tem como pedra angular do Estado de Direito: “Mais vale um culpado à solta do que um inocente na cadeia”. Por fim, seria um contra-senso utilizar o referido argumento como fundamento
para validar a prisão injusta, tendo em vista que o próprio Poder Judiciário, em incontáveis julgados, acaba deferindo liberdade aos reclusos mediante a impetração de Habeas Corpus justamente em razão da demora na formação da culpa, quer dizer, quando não realizado seu devido julgamento.
Em tempos estranhos, impõe-se observar os Princípios que norteiam a Constituição Federal, impõe-se, parafraseando o Ministro do Supremo Marco Aurélio Mello, a resistência democrática e a resistência republicana, de modo a não relativizar preceitos tão valiosos que afastam o exercício do estado arbitrário, pois se, ao contrário fosse, estaríamos “tratando um tumor com uma pequena pastilha” nas felizes palavras proferidas em Tribuna pelo Ex-Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo. Avançando ao tema em debate, a literalidade do Inciso LVII do Artigo 5° da Constituição Federal não deixa margem à dúvida. Culpa é pressuposto de pena, sendo que a sua certificação ocorre com a preclusão maior, quer dizer, com o trânsito em julgado ou quando incabível recurso que possa reavaliar a matéria. O abandono do sentido unívoco do texto constitucional por alguns dos Ministros do STF, que, diga-se de passagem, deveriam ser os guardiões da Constituição, gera perplexidade. Deste modo, a prisão antes do trânsito em julgado da condenação só deveria ter espaço quando decretada cautelarmente, as demais, a rigor, são injustas e afronta o Princípio do Estado de Inocência, que a duras penas foi conquistado, assim como relata a história da humanidade. Vale sublinhar, aliás, que referida garantia consiste em reprodução de Cláusula Pétria, cujo elemento nuclear nem mesmo o Poder Constituinte Derivado está autorizado a restringir, quer dizer, enquanto perdurar o Estado Democrático de Direito, o Princípio da Presunção de Inocência prevalecerá, pois imutável, não sendo passível de supressão mesmo diante da promulgação de uma Nova Constituição. Com efeito, busca-se colocar o trânsito em julgado como marco seguro para a severa limitação da liberdade das pessoas, diante da real possibilidade de reversão ou mesmo atenuação da pena aplicada pelas instâncias superiores. A problemática das prisões sem observância deste marco inicial adquire envergadura ainda maior quando consideradas a superlotação dos presídios, de onde verifica-se a alarmante quantidade de cidadãos recolhidos provisoriamente, o que apenas corrobora a má utilização e interpretação do Princípio da Não Culpabilidade. Com isso, não se pode inverter a ordem natural, prendendo-se para depois investigar, conduzindo o Processo Criminal com certo automatismo incompatível com o sagrado direito de ir e vir dos cidadãos.
Registrado tudo isso, em cenário de profundo desrespeito ao valiosíssimo preceito da Não Culpabilidade, sobretudo quando o ordenamento jurídico prevê a legítima possibilidade de prisão cautelar, não cabe antecipar em contornos definitivos a supressão da liberdade quando cabível a sobredita prisão instrumental prevista no Artigo 312 do Código de Processo Penal que se encontra em consonância com a Magna Carta. Indaga-se: se o indivíduo não oferece riscos a garantia da Ordem Pública, a instrução criminal, bem como a aplicação da Lei Penal, porque sacrificar um instituto de especial relevância, apenas para mandá-lo ao cárcere após uma decisão de segunda instância? Se ele poderia ser beneficiado com a prescrição em razão do retardo nos julgamentos dos processos, é o estado quem deveria solucionar tal entrave, e não, em verdadeiro atropelo da lei das leis, ressignificar o quantum explicitamente exposto na Constituição Federal.
A Corte Superior, em vez de incisiva na tutela de princípios tão caros ao Estado Democrático de Direito, tem flexibilizado, perigosamente, entendimento de dispositivo que é categórico em sua intelecção. Ora, se a culpa apenas pode ser afirmada após o trânsito em julgado, como conceber a ideia de que a mesma restaria satisfeita se ainda passível de recursos? É mais ou menos como se executar uma dívida que ainda não foi consolidada. Absurdo completo.
Portanto, a harmonia do Artigo 283 do Código de Processo Penal com o Inciso LVII do Artigo 5° da Constituição Federal é completa e irredutível, devendo a Corte maior reconciliar a sistemática da prisão à literalidade do referido dispositivo, pois, pensamento diverso, desaguaria no indesejado retrocesso e desrespeito às garantias e direitos fundamentais dos indivíduos que compõem esta querida nação. A relativização no Processo Penal vai permitir a relativização de outras garantias fundamentais. É uma porta que se abre diante deste possível precedente perigosíssimo.